domingo, 25 de maio de 2008

Tradução : necessidade de especialização

Assunto/autor: Renata Celente
Site : ABRATES

Certa vez, em uma lista de discussão de tradutores na Internet, uma colega pediu ajuda para a tradução do verbo "to summon". Um tradutor solícito respondeu à colega e à lista oferecendo as sugestões citar e intimar, para logo depois enviar nova mensagem dizendo que "também havia achado" indiciar e arrolar, opinando que era só escolher uma dessas sugestões e encaixar no texto em português. Imediatamente enviei mensagem à lista e aos dois colegas em questão oferecendo a definição de cada um desses verbos segundo o direito brasileiro e advertindo sobre os perigos do uso indevido de expressões técnicas em um texto legal.Até aquele momento, eu nunca havia ponderado seriamente sobre a necessidade de especialização do tradutor em áreas específicas do conhecimento. Na verdade, eu seguia inadvertidamente o fluxo da idéia – que me fora apresentada ainda na faculdade – de que o tradutor não precisa ser especialista no assunto que traduz para produzir um bom trabalho; a pesquisa séria e o bom senso seriam suficientes para compensar a falta de especialização. Deparando com a situação real sobre a tradução do verbo "to summon", percebi quão perigosa era a falta de conhecimento jurídico naquele caso. Desconhecer o significado jurídico dos verbos citar, intimar, indiciar e arrolar e adotar um deles ao invés do outro tornaria o texto ininteligível, para não dizer risível. Concluí, então, que a especialização era essencial na tradução de textos jurídicos. E isso eu só pude determinar porque além de tradutora, também era acadêmica de Direito. Comecei a questionar, então, se para traduzir textos de outras áreas também bastaria o tal tripé conhecimento superficial-pesquisa-bom senso. Para traduzir um texto de Educação Física, por exemplo, seria necessário um conhecimento mais aprofundado na área biomédica? Ou seria suficiente conhecer os nomes de alguns poucos grupos musculares na qualidade de praticante de esporte e complementar as lacunas com leitura de livros, pesquisa na Internet e o imponderável bom senso?Se eu ainda guardava algum resquício de simpatia pela velha máxima da desnecessidade de especialização, ela sumiu completamente quando, por pura curiosidade, folheei um livro sobre treinamento físico em uma livraria. A cada página, surgiam palavras que nunca havia visto combinadas a fórmulas matemáticas e princípios da física, enfim, termos altamente técnicos – coisas que eu nunca poderia imaginar fizessem parte do universo da educação física. Definitivamente um conhecimento superficial aliado à pesquisa e ao bom senso não seriam suficientes para solucionar as questões terminológicas que invariavelmente surgiriam em um texto como aquele. Aliás, meu próprio bom senso me impediria de porventura aceitar um projeto de tradução naquela área depois de ler o texto original. Concluí, então, que a especialização é fundamental, não só para textos jurídicos mas para qualquer área.É importante definir aqui o que é especialização para não cairmos no mesmo abismo de confusão de conceitos que vem ocorrendo com a tão discutida regulamentação da nossa profissão. Por especialização, devemos entender a concentração prática em um determinado assunto, não sendo essencial educação formal na área de conhecimento escolhida. Como sabemos, no nosso ofício a prática conduz à teoria. Quanto mais traduzimos um determinado assunto, mais o entendemos, mais questionamos, mais atentos ficamos e, assim, construímos um banco de dados teórico que será acionado, consultado e alimentado naturalmente a cada trabalho. A formação na área escolhida é bem-vinda e inegavelmente vantajosa, mas não vislumbro motivos para que seja obrigatória. Afinal, trabalharemos somente com os aspectos lingüísticos e conceituais (elementos externos), e não com as técnicas e práticas do assunto em si (elementos internos).Na tradução o leitor precisa acreditar que o tradutor entende e corrobora o que está escrevendo, e é a especialização que vai guarnecer essa credibilidade. O conhecimento mais profundo de determinado assunto oferece segurança ao tradutor, permitindo que ele assuma o controle do texto de trabalho e evite devaneios e desvios, para não falar nas tentativas de adivinhação – os famosos "chutes" (quase sempre na trave). O que dizer então da perigosa combinação de falta de conhecimento aprofundado e prazo exíguo, mortal quando adicionamos a preguiça e a falta de bom senso. Desconhecendo que arrolar e intimar são ações diferentes e que a utilização de cada verbo deve ocorrer em um contexto específico, o tradutor não assumirá a tarefa de pesquisar o conceito de cada um em um bom livro de direito brasileiro, contará o número de ocorrências de cada um no Google (sim, há tradutores que encaram a pesquisa terminológica como uma demonstração democrática – é eleito o termo que ganhar mais "votos"), simplesmente encaixará o termo no meio da frase e entregará o texto ao cliente. Da mesma forma, mas em um outro exemplo, expressões cristalizadas presentes nos mais diversos tipos de documentos jurídicos, desde contratos de compra e venda até ações penais, como as famosas but not limited to e from time to time amended, recebem soluções pobres e praticamente literais por absoluta falta de convivência entre o tradutor e o mundo jurídico.Entender o contexto para produzir o texto provavelmente foi uma das primeiras lições de introdução à tradução ensinadas na faculdade (lembro-me até hoje da máxima das aulas de interpretação simultânea: pense no que ele está falando e fale o que você está pensando). E não há como entender o contexto se não existe aquele banco de dados teórico que alimentamos a cada trabalho, com muita pesquisa e leitura. E, sem dúvida, é mais fácil alimentar bancos de dados de assuntos específicos e correlatos, como direito e economia, medicina e biologia, engenharia e arquitetura. A vocação natural ou adquirida na prática para traduzir textos sobre resultados econômicos, por exemplo, será base suficiente para direcionar nosso bom senso durante a tradução de um artigo sobre a reforma tributária ou um documento sobre participação acionária. O tradutor especializado estará em maior contato com o universo do assunto que traduz, familiarizado com seus estilos de textos e sua terminologia. O tempo de trabalho de um especialista será melhor aproveitado que o de seus colegas não especializados pois seu bom senso, aliado ao conhecimento aprofundado, conduzirá o tradutor pelos caminhos da pesquisa. Como resultado, teremos a produção de um texto mais confiável em menos tempo, e isso é um grande fator de agregação de valor ao nosso trabalho. O tradutor jurídico, por exemplo, saberá enxugar expressões repetitivas sem eliminar a essência e a finalidade do texto, procurará adaptar os atos processuais e procedimentos à realidade do direito local sem desprezar as características do direito de origem, recorrendo a explicações sobre eventuais diferenças entre eles sempre que necessário, saberá respeitar os valores e os princípios de direito que pautam o texto original, mesmo quando tais valores parecem equivocados e absurdos ao leitor brasileiro. É essa qualidade que gerará a oferta de mais trabalhos, que alimentarão ainda mais a qualidade, num círculo virtuoso saudável e lucrativo.Minha intenção, ao defender a necessidade de especialização, não é engessar o tradutor, até porque os grupos de especialização são muito amplos e permitem interseções, como já dito. O mercado da tradução não é feito somente de textos específicos e essencialmente técnicos. O tradutor pode e deve aventurar-se, desde que munido das ferramentas adequadas (conhecimento superficial, bom senso, pesquisa), por áreas nas quais se considera capaz. Talvez dessa empreitada surja uma nova área de especialização. Talvez o assunto novo traga algum crescimento pessoal ou profissional. Ou talvez o trabalho sirva tão-somente para pagar as contas, o que já é motivo suficiente para ser aceito (desde que sensatamente, repito). Além disso, textos genéricos e assuntos de conhecimento geral certamente não demandam o grau de especialização que discuto aqui. Mas é direito do autor, do leitor e do cliente final que documentos técnicos, independentemente da área de conhecimento, recebam um tratamento tradutório adequado, qual seja, o manuseio por um tradutor que conheça com razoável profundidade o assunto no qual está trabalhando. __________________________________________________________________(julho/2003)Renata Celente é tradutora há 11 anos, associada da ABRATES, formada emInterpretação de Conferências pela PUC-RJ e especializada em traduçãojurídica. (rcelente@terra.com.br)